O Fogo, a Sequidão, a Mornidão
I.
Entre o fogo e a sequidão,
Eu prefiro o fogo à sequidão da alma
Na lama de uma folha de árvore sem bosque
A rastejar tão lesma de gosma cinzenta e translúcida.
Mas, caso você possa se agarrar
Com garras de inalar dormências
À sequidão do deserto da alma de poeta… Meus
Parabéns! amanhã o verso rompe com a aurora,
E não seremos mais úteis. Útil é a aurora sem braços,
Como a faca é útil para o útero da fruta,
Como o fogo é útil para o ventre da matéria incinerada,
Como a luz é útil para os olhos de quem enxerga o ângulo morto
Das coisas pré-históricas.
Quando a morte bate à porta,
Ela bate de mansinho, para não assustar a despedida do dia primaveril,
Sem arregaçar as mangas de suas garras de tão móbil
E mazorra que ela vem chegando sem som, sem sal, sem si:
Segure firme, com e dentes unhas
A frágil possibilidade de viver um dia sequer entre
As tulipas, que florejam no jardim desencantado de pedras
Brancas como seixos brancos e frugais. Aprende com o gato
Como a morte chega. Ele não anuncia a sua chegada em passos de
Veludo. Ele não denuncia a sua presença com o friccionar das sandálias
Das patas em movimento acelerado de motor de avi~o a jato. Não! o
Gato silencia o gato de fora consigo.
Aprende, então, do sil^ncio o que há de mais formoso no barulho
Da gota d’água da pia que não pinga, assim estática, paralisada, como se na U. T. I. ela
Mesma estivesse em estado de coma. O pingo da gota d’água na pia em coma de vírgula
Que não se completa em livre queda.
Aprende, outrossim, da queda, que não se completa em sua parabólica morfogenia,
Engendra o morgue do movimento pendular de Jacobi.
(Onde se socou o Pêndulo de Foucault. Será
Que o Umberto Eco me esqueceu de escrever uma carta de agradecimento
Pela sua escrita pós-moderna e perturbadora. Não; ah, ele vai me enviar um e-mail,
E vamos esclarecer onde fica o tal de Foucault? Onde o encontrar vivo, é claro?
Se nas páginas de seu livro ou numa tumba em Paris; ou Nova York, ou Salgueiro, ou Recife?)
Vê! Onde está o gato que engendra de si o silêncio da queda, da arte de não pingar como
O pingo da pia sem opaco barulho do corpo d’água fria.
¡Yo no! No me miran con ojos de ex-mágico da taberna Minhota. Confieso
Que yo no había hecho nada para llorar con mi poesía mala, poco sabe o no
Sabe nada, pero zapping las noticias de televisión, navegar por Internet, enviar
Momento a momento, un torpedo, descargar tonos de timbre en mi teléfono. Buá!
El mundo es virtual y estamos perdiendo el tiempo en una conversación de cartas marcadas.
Brame o mar de cartas empoeiradas. Las tarjetas que desee, tomar un baño en la piscina
Pero sólo obtengo un trapo roto y voy a limpiarlas, guardarlas en el
Armario del olvido. Buá! Cacacá!… Dejé la escuela y ahora estoy infantil,
De mochila em mi espalda, de los libros em mis brazos, de lancheira em mis hombros. Cacacá!
Eutanásia? Jamais. De que me serve os ossos, se o corpo todo padece
Do sil^ncio demorado das águas sem riacho, sem mar, sem oceano a navegar, sem navio para
Ancorar em nuvens sorumbáticas, áticas sem gregos a povoar os pensamentos ocidentais.
O filósofo que havia em ti, este se disfarçou em poeta? Contudo a filosofia das coisas
Existentes continuam aqui, dentro desse peito amorfo, quase tuberculoso de palavras, a
Mendigar o pão do léxico nosso de cada maldormida noite.
Sim, é-me insubstituível a necessidade premente de respirar, de sorver o ar
Nos pulmões eloquentes por oxigênio, nitrogênio e outros gases salutares que
Habitam a atmosfera da terra sem pejo de ser feliz. Olha como eu me corei! Fiquei
Vermelhinho, da cor de tomate podre, só porque disse a verdade sobre o ar.
A verdade que nem o ar sabe sobre si! Como ele figura insensível na minha história de
Vida. Ar, por enquanto, eu não te abandonarei. Não precisa ficar com essa cara de menino
Mal lavado, eu o conheço, por dentro da casca de ovo do oxigênio, eu o conheço por
Dentro da casca de uva do nitrogênio, eu o conheço mais do que a mim mesmo, pois
Os livros enfadonhos de ciências químicas me apresentaram a você.
O que é isso? É a dor de um pássaro insólito assobiando sua poesia na janela do
Hospital. O que é isso? É a fantasia erótica de uma flor apodrecendo seu perfume
No meu leito de dor. Quanta humilhação! pior do que a dor é a dor da perca de um
Ente querido e amado nos destroços da calamidade da vida. Não é esse o destino de
Quem vive? — morrer e se torna pó, enquanto o espírito sobrevive celeste em
Seus atos, ações de memória na história de outros semelhantes a ele; hein?
Enquanto isso, enquanto a morte negra não inocula o seu veneno no passaporte
De ida a um lugar desconhecido, você fica por aqui com sua individualidade incomunicável.
Porquanto os seus semelhantes não lhe entendem? Você fala grego, eles falam latim. Latem
Tanto ao pé de seu ouvido, que você se cansa de querer
Se comunicar com esses alienígenas. A linguagem sua é tão simples, tão
Simples quanto a faca e seu avesso, tão
Simples quanto a abóbora partida ao meio, tão
Simples quanto o câncer da ampulheta escorrendo-se em areia rachada.
No entanto, eles dizem: — O que você nos diz é tudo retórica, figuras de
Linguagem que estão além de nós.
II.
Entre o fogo e a mornidão,
Eu prefiro o fogo à mornidão da alma,
A viver fechado em grades, erguidas contra
A violência vil que crassa lá
Fora. Quanto vale uma vida?
Menos de dez reais por uma
Dívida, menos do que um sapato
De tênis Nike, menos do que o
Preço da banana na feira
De sábado de manhã.
Eu assisti num noticiário
Tantas mortes de jovens
Por pouca coisa, por um
Consumismo besta de quem
Não quer nada com a vida, de
Vagabundagem sem pernas
E sem cabeça. Onde é que
Vamos parar com isso?
É esse sangue de Caim, essa
Baba de Caim, que nos faz tão
Rígidos e mios diante da vida
De outrem sem tirar nem pôr?
Até os gatos sorriem para
Outros gatos, nem que seja
Por um breve momento,
Antes de iniciar a luta
Pelo domínio de seu território!
Entretanto, os homens nas ruas
Não sorriem, não se cumprimentam —
Colocaram a educação no bolso
Da calça, e saíram atarantados
Atrás do dinheiro de cada dia.
Por isso, eu digo: — Caso você
Possa se agarrar com unhas
Sem dentes na mornidão, agarre
Bem seguroquemorreudevelho,
Porque a mornidão é traiçoeira
Como as águas sem cabelos na
Cabeça e sem pêlos nos braços.
A mornidão o machuca, como
Pregos na tábua em que um faquir
Vai atravessando-a com os pés
Descalços, e depois os pés
Estão todos ensanguentados.
¡Yo no! Yo no veo con estos ojos
De quem comeu e não aprovou.
Me voy. Salí de la escuela
Durante el recreo. Matei aula de
Português, driblei o professor de
Espanhol. Ahora, soló tengo o pano
Roto para limpar as cartas empoeiradas.
¡Uf! ¿Qué problema! Ese ardor de
Locutor de rádio FM, do tipo que fazem
Pegadinhas com o telefone dos outros.
Lo siento, no quería que esos
Versos fossem tão inconsistentes! É que
A fluxão de sangue en el vientre empedernido
Não deixa os dedos datilográficos pararem.
No me mientas! Hoje es el día
Primero de abril? Se for, usted no lee mis versos,
Porque odio a su mentira socialmente aceptable.
Já o fogo esse sim queima
Em função da chama demente,
A qual sugere o pó do silêncio
Pesado na estante de livros,
Onde um retrato de Dom
Pedro II pousa sua barba
Branca na vitrine da página
Com escritos graúnas;
Onde se flameja a dança
Flamenga e envolvente com
Suas castanholas engolfadas
Nos dedos rítmicos e sulfúricos
(Não, não há barbitúricos para
Os crimes farmacológicos
Da romancista Agatha Christie.);
Onde emana o leite do gato
Em paraquedas seguro por
Suas patas ágeis e sem-vergonhas;
Onde a luz brilha mais alva,
Mais neve que a velocidade da luz
Ao percorrer a curvatura gravitacional
Das minhas rugas na entrevista
Com a taxa de juros, o câmbio e
As metas do dragão da inflação econômica.
Mon ongle est sale,
Professeur Paulene. Le
Mon français est sale,
Professeur Paulene.
I feel so dirty!
Je me sens horrible!
Eu acho que é a enxaqueca.
Ela vai me pegar pelo pé.
Aí, eu me quebro todo.
J’ai oublié la leçon de français,
I forget the lesson of English,
Se me olvida la lección de español,
E me perco nos labirintos
Do Minotauro que fala português
De tanto falar em grego arcaico!
Já o fogo, ele se queima
Em combustão instantânea
De queimaduras de terceiro
Grau, no mínimo, escandidas
Na pele em bolhas de sabão.
A pele sucinta se derrete,
Sorvete ao sol sem biquíni,
Manteiga na brasa de uma
Churrascaria de verão sem
Dentes, churrascaria banguela,
Onde o carvão consome a
Carne, a pele da carne e seu
Interior, como se consome
Um refrigerante no almoço.
É o fogo que se queima
Em fáceis fagulhas fugazes,
Tremeluz o osso do fogo
Em pé e cinza, cinza e pó.
É o fogo que se arde
Em caldeirão fervente
De suas próprias chamas
Em águas de cor laranja,
De cor amarela, de cor
Azul, em combustão
De máquina fotográfica,
De flash automático e
Servível. Dentro do fogo:
Suores e tremores valorosos
Se consomem em máquinas
De moer cana de açúcar.
Que caldo de cana saboroso!
20-6-1998. 20-2-2010.