Cinderela sem Baile

Boa noite, Cinderela! Aonde vais sem o teu sapatinho de cristal?
Em que pé ou em que príncipe, você o perdeu? Era tão humilde quanto a
Gata Borralheira a descer a vassoura pelo chão sujo de madrasta, pela
Cozinha imunda de madrasta má, que suja os pratos da pia e não zela
Pela enteada. A vida, você sabe, muito bem disso: não é um conto de fada.
A vida tem de suas agruras na porta, pontapés na janela, socos na boca
Do estômago, sem espaço para comida de tão vazio que é. Olha nos meus
Olhos, você, Cinderela, e não é que de fato você é uma linda mulher! com
Seus cabelos encaracolados que fingem ser lisos, com suas mãos delgadas
Tão delgadas que se tornam transparentes de carvão. O fogo alto do caldeirão da
Velha madrasta má não a deixa dormir inteira a noite. De quando em quando,
Você se levanta e vai vigiar o fogo. Você acha o fogo tão lindo, com suas chamas
Queimando o incenso das horas adormecidas! Mas, você não é a Bela Adormecida, não!
Você não pode dormir, tem que ficar acorda, a noite pelo pé! Com o quê
você está preocupada? Está preocupada com o príncipe? Ele não veio. Ele não virá. E
Não adianta espiar pela janela. A janela está apagada. Se você espia, a sua
Madrasta acorda. Aí o bicho pega. A cobra vai fumar! E o Brasil vai entrar na guerra.
Guerra que nós pedimos para não comprar; não foi, minha cara? A vida,
Coitada, é assim mesmo. Hoje, chove; amanhã, faz sol. Quem sabe um cadinho
De arco-íris não rompe o meteorológico tempo de horror! Ah, você está preocupada é
Com o sapatinho! não é? Vá, fale! Me diga. Sabe, entre nós não há segredos. Você acha
Que eu vou contar para a sua madrasta o caso da poeira lançada debaixo do tapete?
Nã-nãnin-nãnão! Olhe o dedo em sinal de negação. A gente se entende muito bem.
E aquela sujeirinha, bastante pequena, quase imperceptível a olhos nus, que você deixou
Displicentemente grudada na panela enorme de pressão. Ah, eu vi, ouviu! Só a sua
Madrasta é quem não viu, também ela me parece cega. Onde já se viu deixar uma donzela
Presa dentro de casa, como se fosse um animal enjaulado? Até os passarinhos, que são
Confessadamente jumentos de seu entendimento, apreciam a liberdade de sua gaiola. E o
Que dizer de você, minha filha? Sim, eu sou um pai bronco. Burro, que não vi a jaula na qual
Nos enclausuramos. Mas isso vai passar, ah, se vai! Amanhã de manhã, eu vou comprar
Uma moto-serra, dessas que os homens usam para corromper a floresta da Amazônia, e
Juntos nós iremos arrebentar os grilhões que nos prendem. A gente vai abalar e vai sacudir.
Por que não agora? Agora, a inês é morta, e eu estou enfadado. Tchau! que eu vou dormir.

20-2-2010. 3h 18.

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