Taí, no escurinho do cinema,

Edigles Guedes

Nós dois brincávamos com a pipoca
E o refrigerante,
Jornalistas, que éramos, colocávamos a fofoca em dia,
Entre closes de sua mãos nas minhas, entre
Closes de seus bibelôs kitsch, nós
Dois jogávamos
Os pés na poltrona vizinha e vazia,

Na contra-mão da miopia, mal enxergávamos um ao outro, de tão breu que estava,
Gargalhávamos de uma mulher bruaca, com cabelo de
Capivara misturado com milk-shake de Bombril, que lástima, dizíamos, sem
Ser vistos,
O meu coração, estenógrafo, filmava o teu sorriso em
Câmara lenta, sem pause, ele gritava,
Não para, não para, não para,

Você era uma infecção que se alastrava por entre as pernas das cadeiras do cinema,
Por entre os braços do silêncio dândi de um filme de ação,
Será que assistíamos o Matrix, com Keenu Reeves, ou
Foi o Rambo IV, certamente, você não assistiria o
Silvester Stallone,

Você é muito romântica,
Eu sou careta que nem papel de embrulho,
Você carrega a maternidade das horas ao meu lado,
Eu evito o apetite do guarda-chuva,
Você cospe nostalgia com o punho de ginecologista,
Eu me embriago com o leite de oliva num complexo de Golgi
Ou num complexo de Édipo,
Você ama o Paul Valéry,
Eu detesto os poemas psicodélicos de Fernando Pessoa, você me disse que os poetas
Franceses, Mallarmé, Rimbaud, Baudelaire, Francis Ponge, são mais poéticos,
Eu lhe disse que os poetas ingleses, Ezra Pound, W. H. Auden, Frank O’Hara, Allen
[Ginsberg, John Ashbery, Robert Lowell, sem contar as
mulheres, Sylvia Plath, Anne Sexton, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, são mais prosadores e, por isso, mais
Poéticos em favor do coloquial, cotidiano das palavras,
Você era um clássico de Cam~es e inventava significados, o conteúdo da carta,
Já eu inventava signos,
Inventava significantes,
Inventava envelopes e nunca lhe enviei carta ou e-mail,
Você traduzia e lia poesia tipo importação,
Eu me traduzia e fazia poesia tipo exportação,

No meu coração só havia um remetente sem destinatário das angústias do dia, onde
Vicejava no escurinho do cinema,
Nosso primeiro beijo,
Inventado,
Como tudo o mais em minha vida sonegada nesta escrivaninha,

Desancávamos as falácias das luzes da ribalta sem o palco da vida no ato segundo
Da peça financiada por banqueiros gatos
Ansiosos por lucro
E
Mais lucro,
Afinal, os gatos economizam o lucro que fazem, escondendo-os debaixo da terra que
cavam,
Não tínhamos mérito algum, mas estávamos ali no escurinho do cinema
mastigando pipoca, como
Se mastiga mortadela com muita gordura e pouca carne,
Mastigando o inchaço do pé por andar muito de velocípede, ah, na infância eu
Recebi de presente um velocípede de meu pai
E pedalava pela casa,
Batendo de quando em quando nos móveis tão imóveis, escorados na parede ou
Fazendo pose para a fotografia que não vinha,
Dentro de casa, mamãe ralhava,
Menino deixa
Esse velocípede aí, só um pouquinho, mamãe, gente boa,
De bom coração,
De boa feição,
De boa índole,

Você sorvia a Coca-Cola num canudinho de listrado,
Eu, apoplético, capturava o instantâneo da câmara fotográfica do teu rosto,
Belo belo belo
Tenho tudo quanto eu quero,
Você, de mão castiça, alisava o meu civil joelho, machucado de tanto me inclinar
Súdito de teus pensamentos intumescidos de paixão recôndita
No subsolo suburbano da
Tua gula por ti e por mim, por ti, por ti e por mim,

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples,

O meu apetite discreto intumescia a maçã do meu rosto,
Corri pro banheiro, asséptico de sentimentos,
Lá, a bacia sanitária me evitava,
O estômago dava voltas de Paul Valéry num Esboço de Uma Serpente,
Um fiapo de fezes
Desceu liquefeita
O ralo, o buraco
Na bacia
Do toalete, W. C., onde estava pichado
Que amor morreu de aviso-prévio.

O meu coração, sativo de amor, entrou em pânico,
Gelei
Dos pés à cabeça e me agarrei forte, forte, forte, com o coágulo desse dístico
Em mim,
Um vírus suspirou na pia, deixa disso, e vai
Assistir a um filme no escurinho do cinema com ela de mala sem alça.
Fui.

21-2-2010. 23h 22.

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