A Cheia

Edigles Guedes

Hoje, chove bastante; chove.
A chuva arregaçou a cheia.
A cheia, aos borbotões,
Saiu seguindo os trovões
Da calamidade pública.
Olha! como que chove!

Os prefeitos decretam
Estado de emergência.
O governador publica
Em Diário Oficial:
“A chuva estragou
A Câmara Municipal”.

Os vereadores coaxam:
— Estamos sem verba federal
Para combater a cheia,
Que se alastra pelo canal
Do Cavouco, invadindo
A avenida Caxangá!
Vamos todos morrer
Nesse inverno que há!

José Medeiros de Sá,
Oficial de justiça,
Arreganhou o berro esganiçado:
— Foi a cheia, a terrível cheia
Quem sequestrou
Os bens da União;
Agora, não há como provar
A culpa por corrupção
Do deputado Fulano de Tal.

E o povo, miúdo, desabrigado,
Agasalhado em creches e escolas públicas,
Sofre o desenlace cruenho:
Rende-se à fatalidade da perda.
A perda de seus bens materiais:
Geladeira, fogão, guarda-roupa,
TV em cores, cama, mesa, sofá,
Radinho de pilha, estantes, livros,
Tarefas caseiras, som, vídeo, DVD,
Antena parabólica, panelas, louças,
Porcelanas, vidros, CD’s, talheres,
Facas, facões, garfos, colheres,
A xícara com o cafezinho quente;
A perda do lar mel lar.

Hoje, chove aos cântaros; e barrancos
Despencando no morro da esquina…
Favelas, vilas, comunidades ribeirinhas
Naufragam debaixo d’água, e suas gentes
Andam a deriva. Andam a tina.
Gentes que, com a mão em cuia,
Esmolam os bons préstimos de caridade.

Recife, 25-6-2004.

Postagens mais visitadas deste blog

A Lei

Rabiscos no Livro

O Cupim e o Trampolim